CEGOS FEIOS, SUJOS E MALVADOS
Postado por Lucia Maria em novembro de 2013
O desabafo vem do Vanderlei, 59 anos, morador de uma cidadezinha de
Minas Gerais e cego há quase vinte anos depois de um grave acidente de
trabalho como mergulhador em uma plataforma de petróleo:
"Quando fiquei
cego, a dor de não enxergar foi menor do que a dor de ser banido,
excluído da sociedade. Perdi tudo: mulher, amigos, emprego. O mundo
deixou de ser um bom lugar para mim. Virei alguém menor e descartável.
Não era mais considerado igual aos outros. Briguei sozinho e durante
muito tempo por direitos básicos para no final conseguir apenas ser
chamado de radical, chato, mala e xiita. Ainda assim, tenho orgulho de
minha única vitória: o legado que deixei a minha filha, hoje uma grande
lutadora pela acessibilidade".
Entre o bom humor e a melancolia, o Vanderlei desfia histórias de
discriminação e humilhações semelhantes às de milhares de cegos, com a
diferença de não deixar barato nunca:
"Quase fui preso uma vez por
avançar em um safado de um vereador! Mas depois de tantos anos tentando
ser ouvido, tentando mudar as coisas, quem é que não perde a paciência?
Vou te dizer uma coisa, se eu fosse mais jovem, ia até São Paulo e
ficava pelado ao meio-dia de uma sexta-feira em frente ao MASP, na
avenida Paulista, que hoje em dia é assim que se chama a atenção. Não
tem aquelas meninas lindas do FEMEN? Mostram os peitos e na hora viram
manchete no mundo inteiro. Então, o ceguinho pelado pode não ser um
espetáculo tão bonito, mas que eu ia falar no Jô, na Marília Gabriela e
no Fantástico, ah, isso eu ia!".
O relato do Vanderlei ilustra bem o que vemos diariamente: de um lado, a
omissão do poder público, o descaso da sociedade e o inexplicável
silêncio e os braços cruzados dos cegos diante de históricos abusos e
desrespeito; de outro, a luta árdua de no máximo meia dúzia de
gatos-pingados, os radicais e xiitas, assim chamados porque denunciam o
não cumprimento de seus direitos fundamentais com todas as letras e sem
concessões. Já são muito poucos e a forma com que lutam, com
contundentes opiniões e cobranças, acentua ainda mais o contraste.
Postura comum e muito melhor compreendida quando vem de videntes
reivindicando ou denunciando alguma coisa; de emails, artigos,
entrevistas inflamadas, concentrações e passeatas nas ruas até invasões
de órgãos públicos e barreiras de fogo bloqueando estradas, fazem com
que as manifestações destes cegos pareçam amenas conversas ao redor de
uma mesa de chá às cinco da tarde.
Fora que a luta de videntes encontra muitos e variados espaços de
discussão em todo o país, o que também não acontece quando o assunto é
deficiência e muito menos quando é a visual. No caso dos cegos chamados
de radicais e xiitas, é só chegar mais perto, ouvi-los, acompanhar suas
discussões em fóruns virtuais para constatar o que realmente importa:
sua luta é justa, legítima, limpa - frequentemente e muito
convenientemente ignorada, mas raramente contestada.
Só para citar uma discussão recente, como aceitar calados o não
cumprimento da lei federal do ano 2000 que prevê a instalação de
semáforos sonoros nas cidades brasileiras, dispositivos básicos, de
fundamental importância para quem é cego? São Paulo só tem dois! Vale a
pena destacar um trecho de entrevista concedida a este blog pelo
jornalista e radialista carioca Marcus Aurélio de Carvalho, baixa visão,
com quase trinta anos de carreira em rádios, até o ano passado gerente
executivo da Rádio Globo São Paulo e afiliadas: "...Pode perceber como
semáforos sonoros neste país só existem em frente a instituições para
cegos. A mensagem clara é: pode ir estudar! Vai entrar pela porta do
ônibus que não paga, chegar com segurança, ficar só com quem é parecido
com você e depois voltar para casa! E se o cego se apaixonar e quiser ir
a um motel? Ah, aí não dá, porque lá não tem semáforo com sinal sonoro
(risos)... E se quiser tomar um chopp? A mesma coisa, só vai se for
levado por alguém que enxerga".
Será que os cegos sentem-se satisfeitos, respeitados e atendidos na
defesa de seus direitos por secretarias de governo e organizações
criadas para representá-los? Ou parecem mal saber para que servem?
Existem eficientes políticas públicas para a acessibilidade da pessoa
com deficiência visual?
Há punição para o descumprimento de leis?
Será
que estão contentes com a altíssima tributação sobre a tecnologia
assistiva?
Compram seus livros acessíveis das editoras ou pegam
emprestados das bibliotecas públicas, como fazem os videntes que não têm
dinheiro para comprá-los?
A resposta é, invariavelmente, não.
Enquanto isso, assistimos este ano à choradeira emocionada por conta de
um tratado internacional que beneficiaria o acesso dos cegos aos livros,
notícia reproduzida e comemorada sem que ninguém soubesse o que era -
aliás, até hoje não foi divulgada uma única linha informando com clareza
o conteúdo do acordo! E foi cego chorando no twitter, o cantor e
compositor Stevie Wonder chorando em cima de um palco, toda uma comoção
pelo que já era esperado: o fortalecimento ainda maior do monopólio das
instituições para cegos sobre o livro acessível. Isso, sim, é de chorar!
E, para citar mais um episódio recente, o veto à ampliação da
audiodescrição na televisão brasileira, que nem com reza brava sai de
algumas míseras horinhas semanais de programação nas emissoras abertas,
justamente na TV, a principal forma de lazer do brasileiro e, portanto,
o veículo que permitiria o acesso muito maior da maioria dos cegos do
país à informação, à cultura, à diversão.
Um amigo cego diz que a última grande revolução na vida de quem tem
deficiência visual chama-se leitor de tela e não teve nenhum dedo do
governo ou de qualquer instituição assistencialista. Com exceção da
Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência, não
temos muito o que comemorar em conquistas significativas no presente,
daí, então, a exaltação contínua ao passado de vitórias que, embora
louváveis e de extrema importância, principalmente pela união e garra
nunca mais vistas, foram um primeiro passo. Na falta de bons projetos,
eis que governantes vão ainda mais longe no tempo e dizem à exaustão em
palestras que "avançamos muito, porque até pouco tempo atrás as pessoas
com deficiência eram atiradas em rios, poços ou precipícios". Ou esta,
totalmente vaga e também repetida feito um mantra: "Aos poucos, vamos
conquistando o que é preciso." Os cegos radicais e xiitas assim são
chamados porque vão muito além das belas frases e mensagens de otimismo
e esperança, inconsistentes e tolas quando desacompanhadas de ações
efetivas e por estas, sim, são eles os únicos a lutar.
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